Avants e colaboradores realizaram um estudo controlado e randomizado cujos resultados indicam que a acupuntura auricular é uma terapia efetiva para a dependência de cocaína. Ainda que trabalhos preliminares houvessem relatado constatações similares, os estudos realizados até agora não puderam encontrar um benefício com esta terapêutica. Este trabalho, de bom esboço, apoia uma terapia não tradicional, para uma patologia para a qual não foram encontradas até agora boas soluções com os tratamentos convencionais.
A Acupuntura Auricular
O uso de cocaína é um problema médico, científico e humanístico geral, independente de suas implicações estritamente médicas ou de saúde coletiva. Tem trazido consigo o desafio de encontrar uma cura possível. Por isso, mais além das teorias, os métodos e suas aplicações, existem poucos tratamentos realmente eficazes. Nenhum fármaco demonstrou ser útil nesta patologia e somente os tratamentos psicossociais tem demostrado alguma efetividade.
Devido à falta de tratamentos convencionais efetivos, estão sendo desenvolvidos, cada vez mais, tratamentos alternativos e entre eles aparece a acupuntura auricular.
Ainda que os primeiros estudos (não randomizados, não controlados) tenham indicado que a acupuntura poderia ser efetiva para tratar a dependência de cocaína, os estudos controlados realizados até agora não mostraram resultados positivos. A dificuldade em provar a eficácia desta terapêutica reside, em parte, na complexidade de avaliar esta modalidade de tratamento em estudos controlados.
Avants e colaboradores publicaram recentemente um estudo randomizado e controlado onde avaliaram a eficácia da acupuntura auricular para tratar a dependência de cocaína em pacientes viciados em cocaína e opióides, sob tratamento com metadona. Eles centraram seus esforços em formar grupos controle realmente válidos e assim sustentar os resultados. Para isto consideraram primeiro que as sessões de acupuntura fossem acompanhadas de momentos relaxamento, o que por si só pode ter um efeito terapêutico. Ademais, foi proposto que a inserção de agulhas pode ter um importante efeito placebo. Por isto, utilizaram-se dois grupos controles, sendo que em um foi realizada a inserção de agulhas em sítios inativos segundo os princípios da acupuntura. O outro grupo controle recebeu tratamento com sessões de relaxamento somente.
Obteve-se como resultado principal (outcome primário) o consumo de cocaína durante o tratamento, detectado mediante a realização periódica de teste de detecção de metabólitos da cocaína, na urina dos pacientes.
Neste estudo foram incluídos 82 pacientes dependentes de cocaína e opióides, pertencentes a um programa de tratamento de viciados em opióides que estavam em período de acompanhamento com metadona. Excluíram-se pacientes que tinham dependência a outras substâncias além da cocaína, opióides ou nicotina, os que estavam sob algum tratamento para a dependência de cocaína, os que haviam começado alguma medicação psiquiátrica nos 90 dias prévios ao início do estudo e os que haviam realizado algum tratamento com acupuntura no mesmo período. Os pacientes que assistiram a menos de 4 das 8 sessões iniciais e os que compareceram a menos de 1 sessão semanal foram catalogados como "de tratamento incompleto" e foram diferenciados para a análise dos resultados.
Dividiram-se os pacientes de forma randomizada (mediante um sistema informatizado) em três grupos, comparáveis em idade, sexo e porcentagem de HIV positivos:
- Grupo 1: recebeu acupuntura auricular. Nestes pacientes foram inseridas agulhas em 4 das 5 zonas auriculares especificadas pela National Acupunture Detoxification Association (NADA) (a zona simpática, a do pulmão, a do fígado e a shen men). Inseriam-se 3 a 5 agulhas de cada lado, que penetravam a cartilagem auricular de 1 a 3 mm.
- Grupo 2 (controle): a estes pacientes foram inseridas agulhas porém em zonas inativas segundo o protocolo da NADA (sobre a hélix). As agulhas foram inseridas no subcutâneo (não penetravam na cartilagem).
- Grupo 3 (controle): neste grupo foram realizadas sessões de relaxamento mediante a utilização de música e vídeo.
Todos os pacientes realizaram os tratamentos diariamente (de segunda a sexta), em sessões de 40 minutos e durante 8 semanas. Os que recebiam tratamento com agulhas desconheciam se este era acupuntura ou não. Todos os acupunturistas eram profissionais experientes.
De todos os pacientes foram tomadas amostras de urina 3 dias por semana, e nelas procuravam metabolitos de cocaína (benzoileconin). Quando se encontravam mais de 300 ng/ml deste metabolito considerava-se que a amostra era positiva.
A idade média dos pacientes foi de 37± 6 anos, e 47% eram homens. Além disso, 44% eram de raça branca, 38% eram afro-americanos e 16% hispânicos. 93% do grupo 1, 100% do grupo 2 e 93% do grupo 3 haviam consumido cocaína na semana anterior ao início do estudo.
Dos 82 pacientes que iniciaram o tratamento, 63% (52 pacientes) completaram o esquema de 8 semanas: 46% do grupo 1, 63% do grupo 2 e 81 % do grupo 3. Os pacientes que realizaram tratamento com acupuntura completaram menos semanas de tratamento que os pacientes dos outros grupos. Não houve diferenças no estado prévio dos pacientes ou variáveis prévias que possam justificar o baixo nível de retenção do grupo que realizou acupuntura.
Analisaram-se os pacientes que começaram tratamento e comparou-se o tratamento com acupuntura com o de relaxamento (grupo 3). O primeiro tratamento foi associado de forma significativa à possibilidade de encontrar um teste de urina negativo (p=0.01, OR 3.41 95% CI 1.33-8.72). Comparando o tratamento com acupuntura com o grupo controle 2, a acupuntura foi associada também de forma significativa a uma detecção negativa para cocaína (p=0.05, OR 2.4 95% CI 1-5.75). Isto é, os pacientes que de forma randomizada haviam recebido tratamento com acupuntura segundo os princípios da NADA teriam maior probabilidade de apresentar ausência de metabólitos de cocaína na amostra de urina.
Dos pacientes que completaram as 8 semanas de tratamento, os que realizaram tratamento com acupuntura auricular tiveram mais amostras consecutivas negativas, comparados aos que fizeram tratamento de relaxamento (p=0.002) e tratamento com agulhas em sítios "inativos" (p=0.02). Os pacientes que completaram o tratamento de 8 semanas com acupuntura teriam mais probabilidade segundo a análise estatística de entregar três amostras consecutivas negativas na última semana de tratamento (54% do grupo 1, 25% do grupo 2 a 9% do grupo 3 p=0.01).
Segundo os resultados deste estudo a acupuntura auricular, realizada segundo os protocolos da NADA, leva a uma redução no consumo de cocaína. A efetividade desta terapêutica demonstra-se analisando os pacientes que iniciaram tratamento assim como aqueles que o completaram. Na avaliação dos pacientes que completaram a terapia foi evidenciado que a acupuntura auricular realizada durante 8 semanas produz uma abstinência significativamente mais prolongada e que estes pacientes têm mais probabilidade de apresentar abstinência ao terminar a terapia.
Estes resultados são similares aos de estudos preliminares não controlados. Porém os estudos controlados realizados previamente não mostraram um benefício similar; isto pode dever-se ao fato dos controles dos outros estudos utilizarem sítios de punção próximos aos sítios ativos ou sítios que eram ativos para outras patologias e de ação desconhecida na dependência de cocaína. Avants e colaboradores se asseguraram que no grupo controle o tratamento foi administrado sobre sítios de punção realmente inativos. O outro fato que pode ter influenciado nos diferentes resultados deste estudo, é uma distinta avaliação do efeito placebo que têm os tratamentos com agulhas. O elemento mais valioso do estudo de Avants e colaboradores é a formação dos controles, com o qual os resultados adquirem solidez. Ademais, o método de randomização que foi utilizado e a detecção de consumo de cocaína de forma contínua e estrita, também outorgam valor a este trabalho.
As terapêuticas para o vício em cocaína são limitadas e de baixa efetividade. Por isto realizam-se esforços constantemente para buscar tratamentos alternativos. O fato de que um tratamento não pode ser incluído dentro da medicina tradicional, não significa que não devam ser empregados métodos tradicionais para demostrar sua utilidade.
Avants e colaboradores sugerem mediante este estudo que a acupuntura auricular pode ser uma ferramenta de suma validade para tratar a dependência de cocaína. Esta técnica quase não tem efeitos adversos e pode-se realizar em quase todos os pacientes (inclusive os pacientes que não podem adaptar-se às técnicas psicossociais). Ademais é um tratamento de baixo custo e que pode ser feito em uma grande quantidade de pessoas simultaneamente.
Porém este estudo tem várias limitações, não foi duplo cego, os acupunturistas conheciam o tratamento que recebia cada paciente e os pacientes conheciam parcialmente a terapia. De qualquer forma, comprovou-se durante o estudo que os pacientes acreditavam por igual nos tratamentos que recebiam. Mesmo que este tipo de estudo não tenha o mesmo valor que os estudos duplo cego é bastante difícil empregar esta modalidade para avaliar um procedimento. Talvez o ponto mais débil do estudo seja o baixo nível de retenção do tratamento com acupuntura auricular, apesar de não ter havido diferença na incidência de efeitos adversos entre os três grupos. De igual maneira o nível de retenção do tratamento com acupuntura encontrado neste estudo é similar ao dos outros tratamentos farmacológicos ou psicológicos do vício a cocaína.
Devem-se realizar esforços para encontrar métodos que aumentem o nível de retenção do tratamento com acupuntura auricular e aplicá-los em futuros estudos randomizados e controlados.
Em resumo, os resultados deste estudo apoiam o uso de acupuntura auricular para tratar o vício à cocaína. De todas formas este estudo é complexo, tem pontos débeis devido às dificuldades metodológicas inerentes aos estudos controlados que avaliam procedimentos. Deverão ser realizados no futuro estudos mais vastos e que aperfeiçoem o rascunho para que a medicina atual possa aplicar sem pudor a acupuntura para o tratamento do vício a cocaína.
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